CORNER OFFICE
Vivian Schlesinger
Estação Paulista-quatro-amarela-sentido luz. Estação
Paulista... luz, luz. "É só sair do Conjunto Nacional, ir até o estádio em
Itaquera, e voltar, de metrô. Levar X a Y". Exercício de escrita em 2000 toques. Não sei o que é X nem quem é Y, mas quando os
encontrar, saberei.Vou ficar de olho nas placas, o importante é chegar lá. Mas.
Se aqui fosse um país com risco de terrorismo, eu já seria detida no caminho. É
evidente que estou nervosa. Tirei da bolsa as instruções impressas em quatro
cores, em font 18, várias vezes. Desdobrei e dobrei do mesmo modo cada vez.
Qualquer agente de segurança minimamente treinado iria reparar em mim. E o que
eu diria? "Ah, é que estou fazendo um curso de contos e o professor mandou
viajar do ponto A ao ponto B..." Claro. Mas não pode ser tão difícil, gente bem menos
preparada consegue chegar em Itaquera. Me agasalhei demais? Nunca tenho calor então por
que estou transpirando? Ah, alívio, é nesse, linha quatro, amarela, certinho. Desse
lado ou do outro...? Ai, é do outro, eu estava do lado certo, saco! Ufa, tem
até lugar pra sentar?
Finalmente vou poder me concentrar na crônica que deve sair
desse percurso. Título? Percurso do curso! Não, ridículo. "Observe as
pessoas, ouça sua linguagem, anote tudo." Olho por cima das cabeças, ouço
mais do que vejo. O moço aqui do lado sussurra aos gritos no celular.
"Não, cara, nada! Que merda é essa, cara, só vou pra dá entrada! É só autuação, cara, fala pra Terezona que eu já volto,
mostra site de mulher pelada pra ela, cara, cê
sabe que é disso que ela gosta, e daí que tá no escritório, cê acha que ela não...? Dá um jeito,
cara, ela nem vai ver a hora passar, cara, me escuta - tô te falando, cara... falô?
Beleza... cara, té já." Em linha
cruzada, ouço também umas vozinhas agudas no banco atrás do meu. "Ah,
aquela japinha da igreja? Sei, Tati, sei sim, ela é muito feia! Também, japa, né? Já viu japa de progressiva?"
Nau dos preconceituosos.
Graças a Deus, elas vão descer... ops, Luz, é a Luz, eu
também! Como era mesmo? Luz-onze-coral- leste. Achei, e parece que a torcida do Corinthians também - ops, clichê! Apaga, apaga! Mas
será que esse não ia funcionar, afinal, é lá mesmo que eu vou... não, melhor não arriscar.
Agora é só localizar: onze-coral-leste-sentido-guaianazes. Calma. Sentar, anotar.
E entra Y. É um morador de rua, a julgar por suas muitas camadas
de roupa imunda, o paletó sem mangas, sua bagagem - escombros de uma valise com
rodinhas. Ele a arrasta na vertical com dignidade, um executivo a caminho de
seu corner office. Não dá para saber
o que há ali, uns sacos plásticos de vários tamanhos, amarrados com barbantes desfiados, cheios de nós.
Mas o cheiro. Sei que ele é Y quando se senta ao meu lado, estaciona a valise
entre as pernas, e deixa a lateral de seu braço e de sua coxa comodamente
encostados em mim. Há muitos outros lugares vagos. Estou colada à parede. O impulso de levantar dali eu controlo, mas não minha boca: quando percebo, já estou pedindo a ele
que por favor se afaste um pouco. Minha voz sai com uma calma que me surpreende. Y me olha por um segundo, afasta-se alguns centímetros,
ajeita alguma coisa dentro da calça. Pende a cabeça para a frente, parece adormecer. Engulo o cheiro, olho
a paisagem, hesito, mas não mudo de lugar. X é algo que nem eu nem ele sabíamos sobreviver em nós, mas que
brevemente compartilhamos: um mínimo de civilidade.
Ele desce no Brás. Eu vou até o fim e volto, mas não anoto mais nada. Acordo na Luz.